Odonto-tragédia!
Acto 1 -
Estava o scone ímpar, naquele prato alvo......Scone esse, apalavrado com o meu nome... Ínclito scone de singular aparência...quando num alcance impetuoso, o trouxe à boca e mordi tal dureza que me rachou um dente traseiro expondo o nervo....
E naquele momento vi estrelas e cometas, vi até hostes de querubins com alaúdes...tamanha foi a dor descomunal que me levou aos céus do horror sensorial....
Acto 2 -
Em frente ao espelho, soçobrado pelo carpir...ensaiei caretas várias...trejeitos ladinos...risos desconcertados...sorrisos catitas...Hydra-gargalhadas estentóreas...abri a boca à "Vou-te comer!"...fiz beicinho à lá Montmartre....e a resposta teatral foi unânime...o dente não se via em qualquer situação....
Todo este laborioso ensaio Méliès, tinha como objectivo a decisão menos penosa a tomar...(achava eu!)...a de arrancar o dente...ao invés de o desvitalizar...
Acto 3 -
Sentado na cadeira do dentista, desassossegado que nem um hamster a quem tiraram a roda da gaiola...auscultava o dentista que me rodeava o espaço...e dispunha os artefactos necessários à cena...
O odontologista com ar de refugiado, alcançou a anestesia em formato de seringa....avançou para mim e explicou que me ia dar umas várias picadinhas em redor do dente afectado no intuito de o adormecer...
Adulto, corajoso e altivo, qual D. Sebastião do lado de cá da bruma, indaguei o quanto as picadas iriam doer...como resposta consoladora e profissional do estafermo, obtive uma gargalhada displicente!
Levou a paga, a besta!...Pois como reflexo à primeira picada, de tão bem dada que foi, alcei involuntariamente o joelho e dei-lhe um valente pontapé a meia canela....
-Irra!!!!....é assim que você reage à anestesia? - Perguntou o tipo!
-Quando é mal dada sim....! - desprezei-o com o comentário!
E lá voltou ele à picotaria....!
Alguns minutos depois, achando ele e eu que a anestesia tinha pegado...pois o lado esquerdo da minha cara havia perdido as feições e escorria debilmente qual argamassa parede abaixo... ele agarra num alicate e investe na minha boca....
Arregalei os olhos de terror....pois a minha boca tímida era gueisha por demais para comportar aquele alicate concavidade adentro em busca de um dente perdido...
Assim que o dente sente as pegas do alicate e uma força que o quer fazer elevar da inserção maxilar...sinto uma dor cruciante tamanha, que a visão se esvai num concomitante urro varonil....
Ele pára...e resolve aplicar mais anestesia...já que obviamente, a 1ra dose teria sido insuficiente....
Minutos depois, sinto o meu olhar esquerdo a descer e a acompanhar o resto da cara que já residia ao nível do queixo....Vi-me de soslaio num espelho do consultório e achei-me disforme....e juro que ao longe se ouvia o "The eye of the tiger"!
Nova investida....O dentista pega no alicate qual bandarilha e avança para o Hydra-bezerro de boca aberta....repete a cena da tentativa de arranque....e eu acompanho-o com berros Ad lib
....
O Filho da P*** pára e grita:
-Assim não sou capaz de trabalhar....!!!!
E eu respondo com metade da boca e um terço das sílabas à sopinha de massa:
-Ai desculpa lá se a minha dor interfere com a tua técnica!!!!!
(Largos segundos decorrem na seguinte vinheta humana....)
Ele volta ao activo...agarra-me o dente....puxa-o com ganas de raiva...eu grito como um petiz que ficou para trás no zarpar do Mayflower...puxo-lhe a bata até mim, como quem puxa uma alma ao Inferno...ele apoia o pé na cadeira e com efeito alavanca, faz dupla força....
Eu berro de desespero e dor como quando via a Vila Faia.....alcanço-lhe o joelho e valente cacetada lhe dou....Ele cerra a expressão e carrega no acto....a minha cabeça remete à frente e temi pela solidez da coluna....
Nisto...ouvem-se harpas e violinos....enquanto o dente ensaguentado atinge em câmara lenta a lata do recipiente....
Levantei-me....tratámos do resto como dois cavalheiros em tom de voz muito baixo...com elegância e rigor na atitude...e saí de lá...como se nunca lá estivesse estado....
Juro que o tipo era veterinário!!!! Só pode!!!!